sábado, 12 de fevereiro de 2011

FAMILIA

AUTORIDADE LÍQUIDA NA FAMÍLIA


Sandra Eni Fernandes Nunes Pereira e Maria Fátima Olivier Sudbrack
Os pais são os porta-vozes privilegiados de transmissão de valores a serem seguidos pelos filhos. São as primeiras relações afetivas, as grandes responsáveis por nosso processo educativo.
Quando falamos em ser pai e mãe na infância e adolescência, estamos falando em ser pai e mãe por adoção, ou seja, em ser aquele que se compromete, se responsabiliza, sustenta, cuida, ama a criança, independentemente de ser ou não seu pai ou sua mãe biológicos e das formalidades legais, como o casamento, a separação. Estamos falando de um processo de filiação socioafetiva que implica cidadania, pertencimento e identidade; uma filiação que compreende a verdade não do sangue, mas do coração.
Ser pai é participar de forma efetiva do processo educativo dos filhos, ou seja, é participar da construção de seus valores, crenças, sentimentos e escolhas. É ser, ao mesmo tempo, referência de transmissão de regras e limites. É cuidar para que a criança e o adolescente internalizem limites e regras e assim possam se sentir mais seguros e protegidos para fazerem suas escolhas e lidarem com as adversidades da vida.
Assim, a educação articula-se à noção de limite. Na verdade, as crianças e os adolescentes “pedem” limites aos adultos para ajudá-los na organização de sua mente e construção de sua autonomia. São os limites que lhes permitem adquirir autoconfiança; assumir valores morais, responsabilidades; desenvolver o respeito, o sentido do dever e das obrigações em relação ao outro.
Estamos nos referindo aqui ao exercício efetivo da autoridade. A função de autoridade está relacionada às interações que lembram e reforçam responsabilidades e papéis.
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Exercer a autoridade refere-se à habilidade de estabelecer regras e valores, permitindo atos de negociação e neutralizando desvios de comportamento que se afastam das expectativas coletivas.
Apesar de evidenciarmos a importância do exercício da autoridade na vida das crianças e dos adolescentes, temos percebido que muitos deles estão encontrando dificuldades na construção de vínculos efetivos com seus pais ou responsáveis, ou seja, temos encontrado hoje relações bastante fragilizadas na família, quando analisada a função de autoridade. É como se as crianças e adolescentes estivessem diante de uma autoridade líquida – uma autoridade fluida, que não se materializa, não se concretiza, não se compromete com sua função, parecendo “escorrer pelas mãos” dos adultos.
Processos que dificultam o exercício da autoridade
É bem verdade que a relação entre pais e filhos mudou ou teve sua força e eficácia diminuída ao longo do tempo. Vivemos em uma época de desaparecimento progressivo da figura do pai e a evidente importância da mãe no estabelecimento e reforço das redes de relação e da transmissão de valores morais, além de ser a figura central no controle do orçamento doméstico ou gerência financeira da casa.
Além disso, as famílias têm suas especificidades culturais e sua construção de limites é subjetiva e única, ou seja, o que para alguns é ordem, para outros pode ser autoritarismo. O que alguns consideram como cuidado, outros consideram como sufoco. O que para alguns é silêncio, para outros é indiferença.
Assim, entendemos que as crianças e os adolescentes buscam limites, mas a forma como os percebem, como os interpretam e solicitam é particular a cada um. Além disso, às vezes a interpretação que fazem das mensagens e do comportamento dos pais pode ou não corresponder àquilo que eles querem
Exercer a autoridade refere-se à habilidade de estabelecer regras e valores, permitindo atos de negociação e neutralizando desvios de comportamento que se afastam das expectativas coletivas.
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realmente transmitir. Mas é por vezes esta interpretação que os orienta em suas reflexões e ações em relação aos pais.
No entanto, diferentes tipos de cuidado são efetivos, desde que estáveis. É comum a queixa dos adolescentes, em especial daqueles que moram com a família extensa, com relação a quem obedecer. A constante ausência da mãe no dia a dia do filho – por ter que dividir seu tempo com os demais filhos, por precisar trabalhar e por não poder contar com os suportes comunitários que a auxiliem na tarefa de educar seus filhos – força esta mulher a delegar autoridade a outros membros da família. Nesse caso, podemos pensar que problemas de autoridade na família não se devem apenas à rigidez ou permissividade na construção dos vínculos, mas à irregularidade e indefinição dos papéis no seio familiar, como é o caso dos adolescentes que ora recebem limites da avó, ora da mãe, ora da tia, isto é, de quem estiver mais próximo.
Outra questão importante que compromete a autoridade dos pais se refere ao costume de “bater” nos filhos como norma disciplinar. Guimarães (1998) aponta o costume „do bater‟ em meios populares, em que a disciplina tende a ser severa, punitiva e, em determinadas famílias, com requintes de violência.
As consequências da autoridade líquida na família
Como vimos, há várias situações sobre as quais repousam as dificuldades do exercício da autoridade: muitas vezes, os pais não compreendem a real importância que esta função assume na vida das crianças e dos adolescentes; às vezes, sentem-se perdidos e impotentes na construção de valores e normas sociais; não conseguem sozinhos atingir um ponto de equilíbrio, de negociação com eles e se posicionam ora com práticas rígidas demais, ora permissivas demais. Mas as dificuldades ocorrem principalmente porque exercer a autoridade requer envolvimento, responsabilidade e compromisso com a criança e o adolescente, requer suportar e sobreviver às reclamações deles, negociar com eles e enfrentar dificuldades juntos – requer tempo e disponibilidade dos pais e responsáveis, os quais nem sempre os têm.
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A presença de referências sólidas que possibilitem a articulação entre os limites e o seu potencial criativo permite que os momentos de dificuldades e decisões importantes se tornem mais fáceis de ser enfrentados pela criança e pelo adolescente. Do mesmo modo, a fragilização dos vínculos de autoridade na família (dos pais em relação a seus filhos) resulta em dificuldades nos processos de construção das relações sociais dos filhos, o que os torna mais vulneráveis ao envolvimento em situações de risco.
Evidenciamos a importância da família na construção de limites, no resgate da autoridade e da negociação, o que pressupõe o estímulo à autonomia, à descristalização de papéis e ao comprometimento mútuo. Quanto maior a autonomia, maior o senso de responsabilidade do adolescente por suas ações.
As dificuldades inerentes ao processo de busca pela autonomia dos sujeitos em desenvolvimento são maiores quando a função de autoridade não está sendo exercida de forma plena e não existem adultos que possam proporcionar essa assistência. A transgressão surge, então, como um pedido de ajuda diante de uma autoridade “líquida” ou mesmo inexistente.
As formas encontradas pelos jovens na busca pela autoridade perdida passam a ser permeadas por sentimentos de raiva, de angústia e mal-estar. Ao se referir ao abandono da família, eles revelam sentimentos contraditórios, que são compreendidos como desde a vontade de romperem com elas até o desejo de serem por elas reconhecidos. Se não encontram na família, procuram outras vinculações que lhes possibilitem acesso à autoridade. E esta busca por figuras alternativas de referência de autoridade pode representar fator de risco para a sua inserção no mundo das drogas e do tráfico. A transgressão remete a criança e o adolescente à busca da Lei: à busca de uma autoridade “sólida”, firme, consistente.
Referências
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PEREIRA, S. E. F. N. Redes sociais de adolescentes em contexto de vulnerabilidade social e sua relação com os riscos de envolvimento com o tráfico de drogas. 2009. 320 f. Tese (Doutorado em Psicologia Clínica e Cultura) – Instituto de Psicologia, Universidade de Brasília, 2009.
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SZYMANSKI, H. A relação família/escola: desafios e perspectivas. Brasília: Plano, 2001.
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